O Pai

Escrito em 1887, O Pai se mantém atual ao levantar o tema das relações de gênero e poder, num momento em que a desvalorização da mulher e o comportamento humano ganham cada vez mais espaço para o debate.

Na peça, pai e mãe protagonizam uma briga feroz pelo direito de educar a filha, a representação da geração futura. O alicerce social, fincado no exército, na ciência e na religião, é desestabilizado pela mãe, que lança mão de estratégias inescrupulosas para enfrentar o domínio paterno. “É uma história sobre a luta pelo poder e como eliminar o opositor usando mentiras”, afirma Regina.

Conhecida como uma das mais contundentes obras do autor sueco, O Pai apresenta personagens complexas, ambíguas, nada idealizadas e com profunda dimensão humana, que lutarão desesperadamente para entender uma nova sociedade que estava nascendo, com o desenho de novos papéis sociais para homens e mulheres.

No século XIX, o patriarcado, que parecia forte, podia se tornar frágil quando o assunto era a paternidade. A figura masculina, detentora do poder familiar, é Adolf, Capitão de Cavalaria e cientista, ladeado pelo pastor, pelo médico e pelo soldado. As figuras femininas, a esposa Laura, a filha Bertha e a criada Margret, que poderiam simplesmente significar personagens submissas, manipuladas por Laura, formam uma força silenciosa, capaz de subjugar o capitão e influenciar o pastor e o médico. De nada vale a força masculina diante da dúvida que a esposa inculca no marido: será Adolf o pai de Bertha? A dúvida abala o pai, numa guerra sem vencedores nem heróis.

Abaixo, um texto que escrevi para o programa da peça:

            Desde que comecei a trabalhar no teatro, há quase trinta anos, talvez este seja o momento mais desafiador que já vivenciei. Por muitas razões: o abismo revelado entre nós, artistas, e parte da sociedade brasileira que, não sei se por incompreensão, má-fé ou ambos, passou a nos atacar de todas as formas possíveis; a profunda crise que se abateu sobre nós e escancarou nossa crônica incapacidade, enquanto sociedade, de lidar com questões urgentes como desigualdade, destruição ambiental e respeito à vida humana em todas as suas expressões. Vou parar por aqui, mas poderia seguir listando mais e mais problemas. Se há algo que podemos todos concordar é que não são tempos fáceis.

            Diante disso tudo, sinto que nós, artistas, estamos sendo convocados mais que nunca a nos posicionarmos através das obras que criamos. E isso, ainda que absolutamente legítimo e necessário neste momento, cria um ambiente pouco propício a uma das qualidades que mais deveríamos prezar no fazer artístico: o exercício de lidar com a complexidade da vida, extrair potência das contradições que jazem adormecidas nas sombras do que não é fácil, do que exige tempo, dedicação e elaboração para ser destrinchado.

            Essa foi uma luta de Strindberg, na alvorada do teatro moderno há mais de cem anos. E especialmente nesse texto ele se permitiu, corajosamente, mergulhar numa guerra implacável entre duas pessoas, um homem e uma mulher, sem facilitar o trabalho de quem assiste ao nomear heróis e vilões. Seus personagens, como nós, agem a partir de interesses, desejos e necessidades, atravessados inclusive pelas estruturas da sociedade da qual fazem parte. E cabe a nós decifrá-los como esfinges, ou como espelhos cuja imagem nem sempre gostamos de ver.

            Mas, ao longo do processo de ensaios, descobri que há aspectos que transcendem até mesmo as pretensões do autor, mergulhado, na época em que escreveu esse texto, num cientificismo racionalista bem diferente do misticismo que vai assomá-lo em fase posterior, mas que já se insinua nas entrelinhas desta obra. E esse é o aspecto mais perturbador e mais potente do texto: o que não está dito, o iceberg imenso e submerso do qual vemos apenas a ínfima parte. Estar em pé na beira desse precipício e ter coragem de manter os olhos bem abertos. Espero que seja uma experiência valiosa nestes tempos estranhos.

Ficha Técnica
Texto: August Strindberg (1849 –1912). Direção, Iluminação e Cenário: Regina Galdino. Tradução e adaptação: Gerson Steves. Figurinos: Marichilene Artisevskis. Música original: Daniel Grajew e George Freire. Elenco: Adolf – Marcos Damigo; Laura – Tatiana Montagnolli; Margret – Gabriela Rabelo; Doutor Ostermark – Gerson Steves; Pastor – Daniel Costa; Bertha – Beatriz Negri; Klaus – Sérgio Passareli. Fotos: João Caldas Filho. Assistência de Direção: Sérgio Passareli. Design Gráfico: Ramon Jardim

Leia a crítica do espetáculo escrita por José Cetra:
https://palcopaulistano.blogspot.com/2022/04/o-pai.html

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